Mendigo formado em Harvard: Seguir os conselhos da sociedade não é garantia de sucesso
O juiz pousou o olhar no sem-teto acusado de dormir em frente a um edifício de escritórios na Baixa de Washington. Era um sábado à tarde do início de Abril e no Tribunal de Instância Superior, diante do juiz Thomas Motley, estava Alfred Postell, diagnosticado com uma esquizofrenia. Postell tinha o cabelo um pouco comprido e grisalho. A barriga saía-lhe das calças. A barba estava desalinhada.
“Tem o direito de permanecer em silêncio”, disse-lhe um oficial, de acordo com a transcrição da acusação. “Qualquer coisa que diga, sem ser ao seu advogado, pode ser usada contra si.”
“Eu sou advogado”, respondeu Postell.
O juiz Motley ignorou aquela declaração bizarra, pesando se Postell, acusado de invasão de propriedade, apresentaria risco de fuga.
“Tenho de voltar [à barra]”, protestou Postell, oferecendo uma explicação: “Passei no exame na Catholic University, fui admitido no Constitution Hall. Prestei juramento como advogado no Constitution Hall em 1979; licenciei-me em Harvard em 1979.”
Isto já chamava a atenção do juiz Motley, pois também ele se licenciara na Faculdade de Direito de Harvard em 1979. “Sr. Postell, eu também”, disse-lhe Motley. “Eu lembro-me do senhor.”
“Eu sou advogado”, respondeu Postell.
O juiz Motley ignorou aquela declaração bizarra, pesando se Postell, acusado de invasão de propriedade, apresentaria risco de fuga.
“Tenho de voltar [à barra]”, protestou Postell, oferecendo uma explicação: “Passei no exame na Catholic University, fui admitido no Constitution Hall. Prestei juramento como advogado no Constitution Hall em 1979; licenciei-me em Harvard em 1979.”
Isto já chamava a atenção do juiz Motley, pois também ele se licenciara na Faculdade de Direito de Harvard em 1979. “Sr. Postell, eu também”, disse-lhe Motley. “Eu lembro-me do senhor.”
Este sem-teto — que guarda os seus pertences em sacos de plástico brancos, vagueia por um cruzamento da Baixa e às vezes dorme numa igreja — estudou juntamente com o chefe do Tribunal Supremo, John G. Roberts, e o antigo senador do Wisconsin Russ Feingold. Todos eles se licenciaram em Harvard em 1979. O juiz Motley (que não quis ser entrevistado para este artigo) fez uma breve pausa antes de concluir: “Não tenho qualquer escolha neste caso.” Ordenou que o antigo colega fosse para a prisão até que as acusações contra ele estivessem resolvidas.
Numa cidade com milhares de sem-abrigo, é possível que Postell seja o mais qualificado deles todos. Diplomas, prémios e certificados enchem um armário no apartamento da sua mãe, como artefatos enterrados de uma vida perdida. Tem três licenciaturas: Contabilidade, Economia e Direito.
Numa noite de Verão, senta-se dentro de um McDonald’s, com uma toalha branca enrolada na cabeça como um turbante. Ouvi-lo falar da sua vida é como irromper num sonho. Ao princípio tudo parece normal. Mas rapidamente as coisas entram no caos. A cronologia vem aos soluços. Pensamentos incongruentes colidem uns com os outros. “Charleston”, diz ele, “eu tinha propriedades lá, na cidade. Os campos de algodão ficavam fora dos limites da cidade. Os campos de algodão: ficavam fora dos limites da cidade. Apanhei algodão uma única vez na minha vida. Mas os campos de algodão ficavam para lá dos limites da cidade. Eu vivia dentro da cidade. Tínhamos propriedades lá. Herdámos a propriedade. Pouco depois, conduzi até San Diego, Califórnia. Estava apaixonado por uma rapariga.”
Todas estas frases remetiam para o mesmo ponto. Ancoravam Postell nas águas turbulentas da esquizofrenia. Postell, dizia ele a si próprio e aos outros, tinha estudos. Trabalhava duramente. Saía-se bem.
Nasceu em 1948, único filho de uma mãe costureira e pai instalador de toldos. Cresceu a saber o que significa a privação. Era um rapaz normal, diz a mãe, Ruth Priest, mas sempre focado e motivado.
Queria mais do que os pais tinham. Por isso, depois de terminar o liceu, juntou um emprego a um curso no Strayer College. Os êxitos levavam a êxitos. Passou no exame e conseguiu trabalho como gestor de auditorias numa empresa de contabilidade, a Lucas and Tucker, onde diz que recebia um salário anual de 50 mil dólares (42 mil euros), o que na altura era muito dinheiro.
Mas não ficou por ali. Foi para a University of Maryland tirar o curso de Economia. E, ainda antes de se licenciar, apresentou uma candidatura a Harvard — e foi aceito.
“Parecia que a cada dois anos eu ficava a saber que tinhas subido mais um patamar”, escreveu E. Burns McLindon, um gestor importante de Bethesda, no Maryland, que foi professor de Postell em Strayer, numa carta que ele emoldurou. Foi em Strayer que recebeu o Prémio Aluno de Excelência. “O teu caso”, escreveu McLindon, que morreu em 2012, “serve de verdadeiro exemplo aos nossos jovens de hoje para que encontrem dentro deles determinação e ambição para ter sucesso”.
Folhear o livro online do ano de 1979 da Harvard Law School é um exercício semelhante a ver “Antes de eles serem famosos”. Lá está John Roberts com uma massa de cabelo. Lá está o sorridente Ray Anderson, que se tornou vice-presidente executivo das operações de futebol da NFL (Liga Nacional). Lá está Thomas Motley, 24 anos, activo na Associação de Estudantes Negros, de fato e gravata. E lá está Alfred Postell. Tem 31 anos, mais velho do que a maioria, usa um bigode bem cuidado e tem já entradas no cabelo. Tem o olhar de um homem bem sucedido na vida. E que espera ainda muito mais.
O colega Marvin Bagwell, vários anos mais novo, lembra-se dele a chegar às aulas de sobretudo e laço enquanto os outros se arrastavam, de olhos sonolentos. “Havia nele uma dignidade muito discreta”, diz Bagwell, agora vice-presidente de uma grande empresa de seguros. “Era brilhante e conseguia fazer perguntas introspectivas que iam ao âmago da questão.”
O mesmo sentimento foi expresso por outros cinco colegas. “Trabalhava com muito afinco e era extremamente disciplinado”, comenta Piper Kent-Marshall, há muito conselheiro da Wells Fargo. E vestia-se imaculadamente e cheio de aprumo. “Não me espantaria se alguém me dissesse que fazia manicure”, comentou outro colega de turma.
Havia nele uma dignidade muito discreta. Era brilhante e conseguia fazer perguntas introspectivas que iam ao âmago da questão.”
Marvin Bagwell, colega de Harvard
Por isso, os licenciados de Harvard ficaram tão surpreendidos quando souberam do seu destino. Como é que este homem — tão articulado, tão elegante — acaba numa existência invisível nas franjas da capital do país?
“É uma história incrivelmente trágica e triste”, diz Kent-Marshall, “porque na Faculdade de Direito ele era um dos melhores alunos e um homem muito, muito, muito inteligente e charmoso”.
Se houver pistas para o que terá precipitado a queda de Postell na esquizofrenia, estão enterradas nos anos após a licenciatura, quando voltou a Columbia.
Aceitou um emprego num escritório que era então conhecido como Shaw Pittman Potts & Trowbridge, um escritório respeitado que no ano anterior tentara sem sucesso recrutar a futura juíza do Tribunal Supremo Sonia Sotomayor. Naqueles anos, a empresa estava a expandir-se muito rapidamente. Quando Postell chegou, segundo duas pessoas que trabalhavam lá na altura, ele era o único advogado negro do escritório. Devido à sua formação em Contabilidade, foi colocado na equipa fiscal e rapidamente conheceu um jovem advogado chamado Frederick Klein. Foram contratados com um ano de diferença. Ambos ganhavam 35 mil dólares. Klein ficou impressionado com a forma como Postell se vestia. “Era muito urbano”, diz Klein, que agora está no DLA Piper Global Law Firm. Era culto, atencioso, discreto.
Postell era tão discreto que, na verdade, vários advogados que trabalharam na Shaw Pittman não se lembravam de nada acerca dele. Klein e outros dois que se recordavam não conseguiram, ou não quiseram, dizer porque é que poucos anos depois de o ter contratado a empresa o deixou partir.
“Não fico muito confortável por estar a falar nisto”, comentou por email Martin Krall, que chegou a ser sócio da Shaw Pittman. “Já foi há muito tempo, já não sou sócio há mais de 20 anos e não tenho acesso aos arquivos do pessoal, se é que ainda existem.”
Talvez o facto de poucos se lembrarem do que aconteceu a Postell seja aquilo que trai a sua doença. A esquizofrenia assusta. Algumas pessoas, especialmente as bem sucedidas como ele, conseguem esconder os sintomas durante meses. Enquanto a vítima se retira da vida social e do trabalho, mergulhando no isolamento, familiares, amigos e colegas podem nem sequer dar por nada.
E depois há um corte. Os psicólogos referem-se a este momento como “surto psicótico” ou “primeiro surto”. É quando se quebra a ligação com a realidade que a vida se divide nestas duas categorias distintas: antes e depois.
“Infelizmente, o declínio rápido não é invulgar”, afirma Richard Bebout, director do Green Door, um centro de saúde mental que trabalha com sem-abrigo. “Conheço pessoas que tiraram Medicina, fizeram a faculdade e licenciaram-se com as melhores notas e, de repente, vêm-se abaixo. É como a história de John Nash em Uma Mente Brilhante.”
A velocidade com que acontece pode deixar as famílias sedentas de respostas.
“Ele tinha todas aquelas coisas chiques, um bom barco que costumava velejar por todo o lado”, diz uma familiar, LaTonya Sellers Postell. “Estava a viver uma vida de ricos. E, de repente, foi-se abaixo. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu… Perdeu todos os seus bens materiais. É perturbador, absolutamente perturbador.”
Nem a sua mãe, de 85 anos, consegue explicar o que aconteceu. Um dia, uma escuridão abateu-se sobre o filho, diz Priest. Não parava de dizer que ia ser preso. Achava que a polícia estava atrás dele. E a seguir teve a separação da mulher que amava. Pouco tempo depois, teve o seu surto psicótico.
“Eu tinha medo”, conta a mãe. “Ele corria lá para baixo e eu perguntava: ‘O que se passa? O que se passa?’ E tentava abaná-lo um bocado para o trazer de volta. E ele começava a chorar… E desde então foi por aí abaixo, abaixo, abaixo.”
Quando achou que já não conseguia tratar dele, a mãe foi procurar uma pastora evangélica local, Marie Carter, que o acolheu em casa, em meados dos anos 1980.
A sua filha, agora com 60 anos, achou que Postell ficaria lá por algumas semanas ou meses. Mas ele ficou décadas, passando dias inteiros à frente da televisão ou vagueando por um parque próximo, a ver as pessoas passar.
É estranho, como 30 anos passam depressa. A única marca que Postell deixou no registo público durante esse período foi em forma de acusações criminais. Foi acusado de roubo em 1989 pelo tribunal de Ocean City. Também teve outras acusações menores na década de 1990. Mas, para além disso, foi um fantasma.
“Entras numa empresa, tens prestígio”, diz Postell. “E quando perdes essa posição é como um suicídio. É o fim. É a atrofia. Ou, como diz um contabilista, é para se tornar obsoleto. Sabes o que isso quer dizer? Obsolescência. Para além da tua vida útil. Eu estava para lá da minha vida útil.”
Postell ficou à deriva. Todos os dias passava pelas mesmas montras. Uma delas era a loja de café Avondale — até ser barrado pelo dono, levando à sua detenção em Abril de 2014. Postell acabou por ir parar ao Brawner Building, na Baixa. A polícia prendeu-o lá por duas vezes, acusando-o de invasão de propriedade privada. Alegações que, ao fim de 30 anos, levarão Postell a encontrar-se novamente com Thomas Motley.
Depois de se licenciar em Harvard, Motley foi trabalhar para a Steptoe & Johnson, um importante escritório de advogados em Washington. Depois, tornou-se delegado federal do Ministério Público, até ser nomeado pelo Presidente Bill Clinton.
No dia em que Motley ficou frente a Postell, o sem-abrigo não o reconheceu. Tinham passado demasiados anos. Mas diria mais tarde que se lembrava de Motley nas aulas. (Mas não se lembra do presidente do Supremo, Roberts.)
Em Junho, foi ilibado de umas das acusações de entrada ilegal. Outra foi retirada. E assim passa novamente a maioria dos dias no edifício Brawner, perto da Farragut Square. Rhett Rayos, o gerente do edifício, diz ter esperança de que Postell “receba o apoio e serviços que precisa”.
E há esperança. A equipe de saúde mental da Green Door começou a trabalhar com ele, tal como a Pathways to Housing, outra organização que ajuda sem-abrigo. A mãe tentou juntar algum dinheiro para o tirar da rua.
Mas nada disso parece interessá-lo quando numa manhã recente está sentado sozinho à porta do Brawning Building. Tem espalhados jornais aos pés. Agarra num.
“O jornal usou o termo ‘troglodita’”, diz. “Troglodita: Homem das cavernas.”
Depois, perde-se nas suas memórias. “Vivi num prédio de apartamentos na Presidential Towers. Poderia ser considerado um homem das grutas. Tinha varanda. Uma varanda no último andar. Um apartamento no último andar das Presidential Towers. Podia ser considerado um homem das cavernas.”
TERRENCE MCCOY / The Washington Post
Fonte: publico.pt
Comentário
Tentar compreender a vida munido apenas do conhecimento secular pode ser comparado a tentar ler um livro de quântica, em mandarim, de cabeça para baixo. As variantes são muitas e as “verdades” da sociedade não podem ser comprovadas de fato. O ser humano é muito mais frágil do que a gama do seu pueril conhecimento está disposta a admitir. Além do próprio homem, existem outros atores na tragédia humana que sua tão afamada bagagem cultural se mostrou incapaz de se quer rastrear.
Diagnosticar o caso do mendigo como esquizofrenia, após longos anos de sucesso em ter alcançado com brilhantismo o topo da pirâmide social chega a ser ingênuo. No entanto é natural a uma cultura humanista que se arroga poder compreender tudo que a cerca. E o que ela não compreende, finge que o faz, pois sua prepotência exige uma resposta para tudo. Na verdade o diagnóstico de esquizofrenia nos tira do foco da questão, e nos impede de ver que casos como esse são mais comuns do que se imagina, e que pode ocorrer com qualquer um de nós. Quem não conhece um ou mais casos de pessoas que eram absolutamente normais, mas que depois de um grande problema, como foi o caso do mendigo, a separação de sua amada esposa, não saiu dos trilhos e nunca mais voltou? Quem não conhece casos de pessoas que por fatos como depressão, separação, acidentes, doenças, morte de entes queridos, drogas, desemprego, experiências religiosas, se tornaram alienadas psicologicamente.
O caso do mendigo só veio à tona por ele ter sido um ícone social, e isso choca porque desconstrói a ficção de que, os “eleitos” que conseguem alcançar o topo do sucesso social, como ele alcançou, são o suprassumo de nossa espécie. A história do mendigo arruína a arenga da “Pregação do Sucesso”, doutrina mais do que gasta e tão religiosamente seguida em nossos dias. A história do mendigo soa com um alarme, de que o futuro de sucesso pode não estar tão garantido assim, para aqueles discípulos fervorosos que tão cegamente obedecem as doutrinas sociais da humanidade.
Proteção real e completa só Cristo tem para oferecer!
Que só Deus nos influencie.
Roberto Aguiar
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