Crer é preciso
(Eugenio Mussak)
"Quando
entrei para o ginásio (atual quinta série do ensino fundamental) achei que
finalmente começaria encontrar as respostas para minhas dúvidas. Eu não era
diferente dos outros meninos, mas, por algum motivo, tinha alguns interesses que
não faziam parte do cardápio da maioria dos coleguinhas. Queria, por exemplo,
saber a origem das coisas. Tinha curiosidade para entender como tinha começado o
Universo, a vida, a diversidade das espécies. Eu não era especial, mas era
especialmente curioso.
Até
que tive uma aula de biologia que ativou todos os meus neurônios. O professor
entrou na sala, cumprimentou a turma com bom humor e escreveu no quadro
negro: Teorias
sobre a origem da vida na Terra. Pronto, pensei, agora vou saber tudo. Não
senti passarem os cinquenta minutos da aula, mas quando ela terminou percebi que
minha angustia só tinha aumentado. O professor não esclareceu nada, só confundiu
ainda mais, pois agora eu sabia que tudo o que havia eram teorias, não
certezas.
Descobri
que havia três correntes que se atribuíam a primazia de explicar nossa origem: o
Criacionismo, o Evolucionismo e a Teoria Cosmogênica. A primeira defendia o
surgimento da vida como obra de uma vontade de Deus. A segunda explicava que
somos resultado de um longo e lento processo de evolução baseado na seleção
natural, e fiquei sabendo que quem desenvolveu este pensamento foi um inglês
chamado Charles Darwin. Mesmo para meu cérebro jovem essas duas teorias estavam
cheias de falhas por sua insustentabilidade diante de algumas perguntas mais
profundas. A terceira teoria, então, estava descartada pois defendia que a vida
tinha sido trazida de outro planeta, de algum ponto distante do cosmos. Tenha
paciência.
Pela
primeira vez me deparei com o dilema razão versus fé. Como minha tendência,
desde sempre, foi de racionalizar, tratei de me posicionar. Para mim, o
evolucionismo era a explicação, e até hoje sou um fã de Darwin. Tenho uma
pequena coleção de livros sobre sua obra, garimpados mundo afora. Na estante
onde repousam está também uma estatueta do naturalista inglês que comprei no
British Museum há alguns anos. Enquanto escrevo este texto, ele me observa
impassível.
Entretanto
a escolha não me trouxe paz. Em uma discussão acalorada entre os colegas da
turma, nitidamente dividida em dois grupos, eu era um dos mais radicais, mas
minha convicção sofria alguns abalos. Por exemplo, quando critiquei a Teoria
Cosmogênica porque ela não explicava nada, só transferia a responsabilidade do
surgimento da vida para outro planeta, um colega me fez ver que o Evolucionismo
padecia do mesmo mal, pois, se a vida veio do encontro entre moléculas, e estas
são resultado da união de átomos, que por sua vez são formados por prótons,
nêutrons e elétrons devidamente arranjados por forças eletromagnéticas, de onde
surgiram, afinal, essas partículas elementares? Quem as fez? Não seria também
uma forma de entrar em um beco sem saída para nossas perguntas?
Então
fiz o que todos fazemos diante dos grandes dilemas. “Ok” – disse – “vamos jogar
bola”. E fomos fazer algo que sabíamos fazer. E que fazia sentido.
Um jogo empatado
Tive que assistir ao jogo entre a razão e a fé durante toda a minha vida. Estudei em um colégio franciscano moderno, o Bom Jesus, que segue os valores cristãos mas não sonega nenhum conhecimento gestado na ciência. Preocupa-se também com valores humanos, entre eles a perseverança, o respeito e o diálogo, que são tratados como mantras. Tratei de fazer uso deles, e perseverei em minhas dúvidas, dialogando com quem achava que tinha o que acrescentar, e exigindo respeito aos meus questionamentos. Minha formação foi cientifica, estudei medicina, fiz pesquisa, publiquei trabalhos. A ciência costuma ganhar o jogo em meu campo. Mas não de goleada, essa é a questão.
Em
minha juventude, não conseguia me saciar com as explicações metafisicas nem
estava satisfeito com as explicações inconclusas da ciência. Tudo aumentou
quando li que Einstein teria dito que “O Universo não é satisfatoriamente
explicável sem Deus”. Com o tempo fui percebendo que seria sempre assim. Que os
mistério da vida sempre intrigou o homem, e este foi encontrando explicações
onde lhe parecia mais fácil. É claro que as religiões levaram vantagem a maior
parte do tempo. A ciência é coisa nova. Mas agora que ela existe, não podemos
abrir mão dela.
E é justamente a ciência que estuda a mente
humana que nos explica que uma das qualidades do humano é usa capacidade – ou
necessidade – de crer. Então é isso. Precisamos acreditar, faz parte de nossa
existência. E o acreditar não pressupõe, necessariamente, o entender, ou o
comprovar. Basta o crer.
Uma
pesquisa feita pelo Centro de Pesquisas Pew, um dos mais respeitados do mundo,
entrevistou 35 mil pessoas nos Estados Unidos a respeito de sua crença sobre a
existência de Deus, ou de um espírito universal, e recebeu 92% de sim como
resposta. Quando questionados com mais detalhes, as pessoas variavam em
intensidade da certeza, na imagem que faziam de Deus, na fonte de sua fé, mas
continuavam crentes. Uma pesquisa como esta tem margem de erro em torno de 1%, o
que significa que nove entre dez americanos acreditam em Deus e, pelo menos sete
deles não admite discutir sua crença. É questão fechada. Não há pesquisas tão
confiáveis em nosso país, mas tudo leva a crer que aqui não seja muito
diferente.
Isso
confirma mais do que o fato de que se acreditar em uma divindade ser uma
possibilidade humana – trata-se de uma necessidade.
Conversei
sobre isso com o físico Marcelo Gleiser em um congresso em Porto Alegre em que
ambos éramos palestrantes. Ele me contou uma experiência pessoal que muito o
influenciou e que consta de seu livro Criação
imperfeita. Ele estava dando uma entrevista ao vivo em Brasília, sendo
assistido por uma plateia bastante simples, pessoas do povo, com pouca cultura.
Quando ele explicou simplificadamente a teoria do Big Bang, que teria dado
origem ao Universo, um homem da plateia lhe disse “Você está querendo nos tirar
até Deus?”.
Aquele
homem tinha pouco, era pobre, com um futuro previsível, mas pelo menos, ele
tinha sua fé, e isto, se não era o muito, pelo menos era suficiente para lhe
conferir esperança e alguma dignidade humana. Como alguém ousa lhe tirar este
patrimônio? Não era esta a intenção do Gleiser, claro, e ele tomou o ocorrido
como um acontecimento pedagógico sobre o valor da crença.
A crença de cada um
O que não se pode é impor, como foi – e ainda é – comum em alguns lugares. Nem a fé nem a falta dela, que não deixa de ser um tipo de crença. Não gostamos que coloquem nossas crenças em discussão. São nossas, como nossas vísceras.
Freud
abordou essa dificuldade do homem ver questionada suas crenças quando descreveu
as feridas narcísicas. Narciso é o personagem mitológico que achava feio tudo o
que não era espelho. Ele era o mais belo, senão o único. Pois Freud nos explica
que todos somos narcisistas, se não por nossa aparência físico, pelas nossas
convicções. O que acreditamos fortemente é sempre superior ao que os outros
acreditam.
Ele
relatou que a própria humanidade sofreu três fortes traumas narcísicos. O
primeiro foi provocado por Copérnico e Galileu, que tiraram a Terra do centro do
Universo. O segundo teria sido provocado por Darwin, ao negar a ideia de que o
homem teria sido feito à imagem e semelhança de Deus no sexto dia da criação. E
o terceiro seria a ideia do inconsciente, sua própria teoria, que teria
transformado o homem em um joguete de seus impulsos. Levamos tempo para aceitar
tais ideias novas. Até hoje não se ensina Darwin em algumas escolas americanas
conservadoras. É duro mudar de crença.
No
fabuloso filme Brincando
nos campos do Senhor, produção americana dirigida por Hector Babenco e
totalmente filmado na Amazônia, pastores protestantes tentam converter índios ao
cristianismo e com isso salvá-los. Há também um padre católico, que eles
consideram “a concorrência”. Mas o principal concorrente são as crenças
originais dos índios, que até então tinham respondido a seus anseios
existencialistas.
Entre
as varias divindades primitivas havia um espirito que habitava as nuvens (o céu)
e que era responsável por provocar enchentes se estivesse brabo com os homens.
Quando os missionários começaram a falar de um Deus que vive no céu, os índios
acharam que se tratava do próprio. Bastou para que se instalasse a confusão. Os
índios entenderam que, sim, Deus deveria ser “temido”.
Como
interferir na crença de uma pessoa? E, antes, por que fazer isso? Por que não
respeitar, simplesmente, considerando que uma crença é uma condição
essencialmente pessoal? Há quem defenda que qualquer tentativa de impor sua
crença a outro deva ser entendida como um tipo de fundamentalismo. Seria melhor
se simplesmente respeitássemos. Muita desavença, intolerância, injustiça e morte
teria sido evitada.
O
físico Richard Dawkins, um dos principais defensores do ateísmo (autor de Deus,
um delírio) também é acusado de ser fundamentalista por tentar impor sua própria
crença. Ele afirma, entretanto, que mudaria imediatamente de ideia se tivesse
uma confirmação da existência do divino, e que o mesmo não se pode esperar dos
religiosos. Essa desavença vai longe.
Enquanto
isso, vamos vivendo e buscando o que realmente interessa, a paz. Quando há
alguns anos tive um problema seríssimo de saúde (um aneurisma cerebral que foi
eliminado com cirurgia), eu estava na UTI munido de todas as informações que a
ciência podia me dar. Tinha esperança. Mas também medo, muito medo. Naquele
momento percebi que só a razão não me bastava. Precisava algo mais. Foi quando
recebi de meu amigo Carlos, um economista racional, uma cópia da Carta Encíclica
de João Paulo II, chamada exatamente Fides
et Ratio – Fé e Razão.
Trata-se
de um estudo maravilhoso desse filósofo que foi Papa. O primeiro paragrafo diz
“A fé e a razão (fides
et ratio)constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se
eleva para contemplar a verdade”. Eu não frequento igrejas, mas aquele texto
lúcido, inteligente, muito me ajudou. Percebi que sim, crer pode ser preciso.
Como verbo ou como adjetivo".
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