quarta-feira, 1 de abril de 2015

A burocratização da caridade, não
raro, sufoca o amor que lhe dá sentido
e desvia recursos das pessoas carentes


por JOMAR MORAIS


A prática da caridade é um dos pilares doutrinários do Cristianismo e um traço cultural de nossa civilização cristã.

No primeiro século de nossa era, com os discípulos que conviveram com Jesus ainda impregnados de seu carisma e de seu ideal compassivo, a caridade era um exercício inseparável da atividade-fim da Igreja. Convertidos ricos vendiam seus bens e o resultado era aplicado em favor dos que nada tinham, conforme a narrativa de Lucas no livro Atos dos Apóstolos.

Na periferia de Jerusalém, Pedro ergueu uma galpão para receber doentes, excluídos e necessitados de todo tipo, depois conhecido como a Casa do Caminho e os seus mantenedores como os “homens do Caminho”, numa época em que ainda não existia o adjetivo cristão. Ali se pregava o Evangelho, aplicava-se curativos, alimentava-se famintos e acalmava-se desesperados.

Talvez a Casa do Caminho surpreendesse os que hoje associam espiritualidade a ambientes necessariamente assépticos, tranquilos e organizados. A julgar pelos registros, o local mais parecia um hospital público carente de nossos dias.

Esse tipo de prática solidária predominou nos ambientes religiosos, e mesmo em grupos comunitários laicos, até anos recentes. O médium Chico Xavier, por exemplo, simplesmente postava-se debaixo de uma árvore e distribuía pão e, às vezes, dinheiro aos pobres, enquanto os cobria com a paciência da escuta, palavras de esclarecimento e gestos de afeto.

Mas o mundo mudou, ficou complicado, e a prática da caridade, antes tão espontânea, virou uma atividade submetida a teorias, fórmulas e estruturas que nem sempre preservam a motivação amorosa que lhe dá sentido.

De repente, aos olhos da maioria tornou-se infrutífero e desnecessário o trabalho dos pequenos grupos beneficentes e o exemplo solitário dos santos. A caridade passou a depender de estruturas gigantes e burocratizadas, sob o pretexto de que, num mundo de grandes escalas, só os grandes podem produzir resultados.

Não creio nisso.

Sei que carecemos de grandes estruturas para alcançar multidões, catalizando processos de mudança que se fazem urgentes. Mas isso não invalida o trabalho dos pequenos grupos e dos corações santificados, indispensáveis para manter acesa a chama do amor no dia a dia. A fraternidade e a paz dependem mais desse esforço, movido a sentimento desinteressado, do que das megaestruturas dependentes de verbas milionárias.

Voltando a Chico Xavier. Em sua ingenuidade caipira, ele costumava dizer que em casa que muito cresce o amor desaparece.

Para mim, esta frase deveria ser colada à cabeceira da cama dos que gerem grandes obras caritativas, a fim de que redobrem sua atenção e zelo. Penso nela toda vez que leio noticias sobre desvios de verbas em instituções beneficentes e sobre o trabalho sujo a que se prestam as ONGs-laranjas, usadas por corruptos. Penso nela ao saber que, quando doamos 10 reais a um gigante da caridade, até 70% desse valor se perde em pagamentos de salários e custeio de suas máquinas colossais.

[ Publicado na edição do Novo Jornal de 24/03/15 ]


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