quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Entre a toxina botulínica e a fluoxetina: uma reflexão sobre a facilidade e a infelicidade

Nunca tivemos tantos recursos para facilitar nossa vida. A cada dia, novas descobertas, equipamentos e artefatos que prometem resolver inúmeros problemas, poupando-nos trabalho e esforço para sua resolução. O que antes levava muito tempo, hoje se faz num piscar de olhos.
 
Tudo muito rápido, porque a demora é prejudicial. A comida é pronta ou semipronta, pois não há tempo para cozinhar; as roupas são de tecido sintético, pois não se tem tempo para engomar; os utensílios e os eletrodomésticos apresentam “mil e uma” utilidades, para não perdermos muito tempo na cozinha.
 
Na indústria da beleza, são vários os cremes, loções e ampolas instantâneas, que prometem pele e cabelos renovados e remoçados com apenas uma aplicação. A toxina botulínica acaba com os vestígios do tempo em nosso rosto e os modernos aparelhos e técnicas de cirurgia plástica enxugam, como num passe de mágica, indesejados quilos excedentes. Na indústria farmacêutica, a fluoxetina é vendida como uma poderosa droga que rapidamente “cura” a depressão, a ansiedade e tensão pré-menstrual.
 
A cada minuto, somos bombardeados pelo marketing das redes sociais, com propagandas de todos esses bens (males?) "instantâneos e milagrosos". O irônico disso tudo é que estamos cada vez com menos tempo e mais infelizes, embora toda essa parafernália de coisas nos prometa exatamente o contrário: mais facilidade, para que possamos gozar a vida com mais tempo e qualidade.
Aqui, chegamos ao ponto principal desta reflexão: quem nos disse que facilidade traz bem-estar e felicidade? Será que antigamente todos viviam infelizes, sem os recursos tecnológicos de que hoje dispomos? Posso responder a essa pergunta, pois atravessei minha infância e adolescência num mundo, pasmem!, sem celular e sem Internet. Tive o prazer de crescer numa época em que desfrutava de companhias reais e não virtuais, quando vivenciávamos sentimentos expressos não por emoticons engraçados, mas por lágrimas, risos e contrariedades verdadeiros.
 
Sei bem o que é a espera de uma longa carta de amor, de bilhetes escondidos, diários inconfessáveis. Hoje não há mais nada disso. Não escrevemos mais. Não temos tempo! É mais fácil compartilharmos o que já foi escrito por alguém (de preferência com uma ilustração "fofinha" sobre o texto) do que tentarmos escrever aquilo que desejamos dizer. Estamos muito ocupados, em busca de mais facilidades para termos felicidade :) Mas não! Não somos mais felizes! 
 
Estamos todos interligados, conectados e surtados. Vivemos o surto da pressa, que exige que tudo seja fácil, num só clique. Não podemos ficar um minuto sequer sem checar nossas mensagens e as redes sociais, sob pena de ficarmos desatualizados e alheados da realidade, que muda com uma velocidade assustadora. Tempo para ler um livro? “Não, é muito demorado”. Para meditar? “Não consigo aquietar a minha mente, os pensamentos correm velozes”. E assim vai seguindo a humanidade, com passos rápidos, seguindo por um caminho de neurose e infelicidade.
 
O fato é que nunca vivemos tão infelizes! Nossos ídolos não são mais os mesmos (peço licença a Belchior) e as aparências enganam, sim! Não idolatrávamos a beleza anoréxica das modelos nem o erotismo apelativo das bandas de axé e de funk. Curtíamos bossa nova e jazz, os mineiros do Clube da Esquina e também os Novos Baianos. Tivemos o privilégio de acompanhar o nascimento e a consolidação das carreiras das bandas de rock nacional na década de oitenta, como Paralamas, Legião, Ira e Capital Inicial.
 
Os jovens de hoje não sabem o que é fazer luau, poucos sabem tocar um instrumento e a carreira de seus ídolos tem a duração de sua projeção midiática. Não são mais aqueles jovens que cresceram frustrados, privados de facilidades e que, por isso mesmo, lutaram e se esforçaram para conquistar os seus sonhos e ideais, sabendo hoje dar valor ao que realmente importa.
De fato, as aparências enganam e não devemos nos iludir, achando que nossos jovens, hoje, são mais felizes porque têm o celular mais moderno, a blusa de marca e o videogame do momento. Ou porque não precisam mais passar pelo constrangimento de uma palmadinha (não, não estou defendendo essa prática) e por limitações e castigos, antes impostos por pais que sabiam seu papel e demonstravam sua autoridade. Aparentemente eles têm tudo para ser felizes, mas não são! É alarmante o número de suicídio entre jovens e adolescentes, o que demonstra que algo está muito, muito errado.
Estamos cheios de facilidades e vazios de felicidade!
Na verdade, sou de opinião que a razão principal de todo esse estado de coisas e de ânimo está no excesso de facilidade, que nos prende a uma vida superficial e desmotivadora, que nos ilude a achar que é felicidade aquilo que só representa a satisfação de um capricho, de uma necessidade fabricada pelos interesses das grandes organizações empresariais, que criam dificuldades para nos vender facilidades.
E à medida que aumentamos o patrimônio desses bens de fácil consumo, depreciamos nosso patrimônio intelectual e moral, os únicos ativos verdadeiramente responsáveis para assegurar um balanço positivo ao fim de nossa jornada existencial.

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